Constituição, realidade e crise

W. Steinmetz
{"title":"Constituição, realidade e crise","authors":"W. Steinmetz","doi":"10.18593/EJJL.V17I3.12750","DOIUrl":null,"url":null,"abstract":"“O direito constitucional tem de se garantir por si mesmo”, escreveu Konrad Hesse. A observância e a aplicacao das normas constitucionais nao estao garantidas por outras normas acima da Constituicao ou por poderes supraestatais. “A Constituicao nao depende senao de sua propria forca e de suas proprias garantias.” (HESSE). \nNo caso da Constituicao brasileira, sao garantias imanentes o controle de constitucionalidade das leis, os limites materiais ao poder de emendar a Constituicao, o dever de aplicacao imediata de direitos e garantias fundamentais e a previsao de um orgao judicial guardiao maximo da Constituicao, com poderes de decidir sobre materias constitucionais com efeitos imediatos, gerais e vinculantes. \nContudo, o proprio Hesse lembra que nem o mais “engenhoso sistema constitucional” consegue garantir a sua propria efetividade quando certos pressupostos nao estao presentes, especialmente quando a Constituicao nao consegue ser uma ordem configuradora da realidade historica viva. Essa capacidade configuradora “[...] depende em grande medida de fatores externos, sobre os quais a Constituicao so pode influir limitadamente.” Hesse menciona entre os fatores externos as circunstâncias da realidade historica e o nivel de desenvolvimento espiritual, social, politico ou economico dos tempos. \nOutro pressuposto essencial, ainda segundo Hesse, e a conduta dos atores que participam na “vida constitucional”. Decisiva e a disposicao de governantes e governados aceitarem como moralmente correto, legitimo e imperativo o conteudo da Constituicao. \nEm sintese, paralelamente as garantias imanentes da Constituicao, desempenham um papel decisivo os fatores externos. E a dialetica que se processa entre norma e realidade, que se manifesta em complementaridades e tensoes. \nTudo isso nao e inovacao ou novidade teorica. Sao premissas bem assentadas no campo da Teoria da Constituicao enquanto locus epistemico de analise e reflexao sobre as constituicoes. O que muda e a descricao ou a interpretacao da relacao entre Constituicao e realidade que cada uma das inumeras teorias da Constituicao propoe e a enfase, descritiva ou valorativa, que se atribui aos polos da relacao. \nNa atual quadra da historia do Brasil, retomar a pesquisa e a reflexao rigorosas sobre a dialetica Constituicao-realidade e, se nao uma imposicao, muito recomendavel a comunidade cientifica do direito, especialmente aqueles que investigam o direito como fenomeno normativo e suas projecoes sobre as relacoes politicas e sociais. Nosso Pais vive aquela que talvez seja a maior crise apos a redemocratizacao. A crise politica somam-se uma crise economica e uma crise financeira do Estado, nos tres niveis da Federacao. \nA crise politica por si mesma nao seria atemorizante ou ameacadora. Desde a redemocratizacao em meados dos anos 1980, atravessamos crises politicas sem rupturas institucionais ou constitucionais. No pos-1988, a Constituicao tem se mostrado adequada e, ao mesmo tempo, resistente as crises politicas sazonais. \nNo entanto, ha fundados motivos para supormos que a atual crise – que possui uma dimensao politica, uma dimensao economica e uma dimensao financeira – desafia e continuara desafiando a engenharia institucional e organizacional desenhada pela Constituicao de 1988. Primeiro, as dimensoes da crise formam uma unidade, estao profundamente imbricadas. Passados dois anos, constata-se que a solucao da crise geral depende de uma solucao articulada ou encadeada das tres dimensoes. Segundo, o Pais necessita de uma ampla reforma politica para a qual os partidos, os grupos e as faccoes politicas parecem ter disposicao nenhuma para convergir. Terceiro, a crise sinaliza que o Estado brasileiro, em todas as suas esferas, ja nao tem condicoes de, simultaneamente, cumprir todas as tarefas que a Constituicao lhe impoe, atender as demandas remuneratorias das corporacoes internas ao Estado (especialmente, daquelas corporacoes tradicionalmente privilegiadas) e as demandas de financiamento ou credito de grupos economicos e sociais externos ao Estado. Quarto, o Pais necessita de uma profunda reforma fiscal, mas ninguem quer perder coisa alguma. \nApos 1988, a comunidade cientifica do direito, especialmente aquela dedicada a investigacao do direito constitucional, priorizou a exploracao e a construcao de modelos, interpretacoes e esquemas argumentativos que otimizassem as potencialidades normativas, substantivas e instrumentais da Constituicao. E isso, sem duvida, produziu um estado da arte muito superior na teoria, na dogmatica e na praxis constitucionais aquele anteriormente existente. Desse empenho, resultou, ate mesmo, um certo otimismo constitucional. \nAqui, nao se esta dizendo ou insinuando que o Pais vive uma crise constitucional ou esta na iminencia de se precipitar em uma crise constitucional. A Constituicao vige. A Constituicao, na sua globalidade, nao e motivo de dissenso. A Constituicao mantem sua legitimidade. Sinaliza-se, isto sim, que talvez estejamos no fim de um ciclo. A crise pela qual atravessamos testara as solucoes constitucionais (principios e regras) que temos para o jogo politico, para os direitos e interesses das corporacoes que movimentam o Estado, para o financiamento dos inumeros deveres e tarefas do Estado e para o atendimento de interesses de grupos economico-empresariais e de movimentos da sociedade civil organizada. \nNesse contexto, a comunidade cientifica do direito nao estara cumprindo seu papel ao se limitar tao somente a desenvolver investigacoes que explorem as potencialidades normativas da Constituicao a partir de uma perspectiva internalista; que explorem o direito constitucional apenas a partir dos mecanismos e das garantias imanentes da Constituicao. Os problemas e desafios que compoem a crise demandam investigacoes que tambem tenham por objeto a dialetica Constituicao-realidade e as condicoes faticas (elementos externos) que interferem na efetividade da Constituicao. A adequacao empirica das solucoes constitucionais deve ser submetida a analise e a critica, sem preconceitos, mas tambem sem o proposito de desconstituir aqueles elementos essenciais da Constituicao, especialmente os direitos fundamentais e o regime democratico, porque sao patrimonios da civilizacao a qual estamos ligados. Sem que se perca a identidade de juristas, teoricos ou cientistas do direito, sera preciso abrir-se e dialogar com outros saberes, como a Ciencia Politica e a Economia, para citar dois exemplos.","PeriodicalId":206661,"journal":{"name":"Espaço Jurídico: Journal of Law","volume":"367 1","pages":"0"},"PeriodicalIF":0.0000,"publicationDate":"2016-12-20","publicationTypes":"Journal Article","fieldsOfStudy":null,"isOpenAccess":false,"openAccessPdf":"","citationCount":"0","resultStr":null,"platform":"Semanticscholar","paperid":null,"PeriodicalName":"Espaço Jurídico: Journal of Law","FirstCategoryId":"1085","ListUrlMain":"https://doi.org/10.18593/EJJL.V17I3.12750","RegionNum":0,"RegionCategory":null,"ArticlePicture":[],"TitleCN":null,"AbstractTextCN":null,"PMCID":null,"EPubDate":"","PubModel":"","JCR":"","JCRName":"","Score":null,"Total":0}
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Abstract

“O direito constitucional tem de se garantir por si mesmo”, escreveu Konrad Hesse. A observância e a aplicacao das normas constitucionais nao estao garantidas por outras normas acima da Constituicao ou por poderes supraestatais. “A Constituicao nao depende senao de sua propria forca e de suas proprias garantias.” (HESSE). No caso da Constituicao brasileira, sao garantias imanentes o controle de constitucionalidade das leis, os limites materiais ao poder de emendar a Constituicao, o dever de aplicacao imediata de direitos e garantias fundamentais e a previsao de um orgao judicial guardiao maximo da Constituicao, com poderes de decidir sobre materias constitucionais com efeitos imediatos, gerais e vinculantes. Contudo, o proprio Hesse lembra que nem o mais “engenhoso sistema constitucional” consegue garantir a sua propria efetividade quando certos pressupostos nao estao presentes, especialmente quando a Constituicao nao consegue ser uma ordem configuradora da realidade historica viva. Essa capacidade configuradora “[...] depende em grande medida de fatores externos, sobre os quais a Constituicao so pode influir limitadamente.” Hesse menciona entre os fatores externos as circunstâncias da realidade historica e o nivel de desenvolvimento espiritual, social, politico ou economico dos tempos. Outro pressuposto essencial, ainda segundo Hesse, e a conduta dos atores que participam na “vida constitucional”. Decisiva e a disposicao de governantes e governados aceitarem como moralmente correto, legitimo e imperativo o conteudo da Constituicao. Em sintese, paralelamente as garantias imanentes da Constituicao, desempenham um papel decisivo os fatores externos. E a dialetica que se processa entre norma e realidade, que se manifesta em complementaridades e tensoes. Tudo isso nao e inovacao ou novidade teorica. Sao premissas bem assentadas no campo da Teoria da Constituicao enquanto locus epistemico de analise e reflexao sobre as constituicoes. O que muda e a descricao ou a interpretacao da relacao entre Constituicao e realidade que cada uma das inumeras teorias da Constituicao propoe e a enfase, descritiva ou valorativa, que se atribui aos polos da relacao. Na atual quadra da historia do Brasil, retomar a pesquisa e a reflexao rigorosas sobre a dialetica Constituicao-realidade e, se nao uma imposicao, muito recomendavel a comunidade cientifica do direito, especialmente aqueles que investigam o direito como fenomeno normativo e suas projecoes sobre as relacoes politicas e sociais. Nosso Pais vive aquela que talvez seja a maior crise apos a redemocratizacao. A crise politica somam-se uma crise economica e uma crise financeira do Estado, nos tres niveis da Federacao. A crise politica por si mesma nao seria atemorizante ou ameacadora. Desde a redemocratizacao em meados dos anos 1980, atravessamos crises politicas sem rupturas institucionais ou constitucionais. No pos-1988, a Constituicao tem se mostrado adequada e, ao mesmo tempo, resistente as crises politicas sazonais. No entanto, ha fundados motivos para supormos que a atual crise – que possui uma dimensao politica, uma dimensao economica e uma dimensao financeira – desafia e continuara desafiando a engenharia institucional e organizacional desenhada pela Constituicao de 1988. Primeiro, as dimensoes da crise formam uma unidade, estao profundamente imbricadas. Passados dois anos, constata-se que a solucao da crise geral depende de uma solucao articulada ou encadeada das tres dimensoes. Segundo, o Pais necessita de uma ampla reforma politica para a qual os partidos, os grupos e as faccoes politicas parecem ter disposicao nenhuma para convergir. Terceiro, a crise sinaliza que o Estado brasileiro, em todas as suas esferas, ja nao tem condicoes de, simultaneamente, cumprir todas as tarefas que a Constituicao lhe impoe, atender as demandas remuneratorias das corporacoes internas ao Estado (especialmente, daquelas corporacoes tradicionalmente privilegiadas) e as demandas de financiamento ou credito de grupos economicos e sociais externos ao Estado. Quarto, o Pais necessita de uma profunda reforma fiscal, mas ninguem quer perder coisa alguma. Apos 1988, a comunidade cientifica do direito, especialmente aquela dedicada a investigacao do direito constitucional, priorizou a exploracao e a construcao de modelos, interpretacoes e esquemas argumentativos que otimizassem as potencialidades normativas, substantivas e instrumentais da Constituicao. E isso, sem duvida, produziu um estado da arte muito superior na teoria, na dogmatica e na praxis constitucionais aquele anteriormente existente. Desse empenho, resultou, ate mesmo, um certo otimismo constitucional. Aqui, nao se esta dizendo ou insinuando que o Pais vive uma crise constitucional ou esta na iminencia de se precipitar em uma crise constitucional. A Constituicao vige. A Constituicao, na sua globalidade, nao e motivo de dissenso. A Constituicao mantem sua legitimidade. Sinaliza-se, isto sim, que talvez estejamos no fim de um ciclo. A crise pela qual atravessamos testara as solucoes constitucionais (principios e regras) que temos para o jogo politico, para os direitos e interesses das corporacoes que movimentam o Estado, para o financiamento dos inumeros deveres e tarefas do Estado e para o atendimento de interesses de grupos economico-empresariais e de movimentos da sociedade civil organizada. Nesse contexto, a comunidade cientifica do direito nao estara cumprindo seu papel ao se limitar tao somente a desenvolver investigacoes que explorem as potencialidades normativas da Constituicao a partir de uma perspectiva internalista; que explorem o direito constitucional apenas a partir dos mecanismos e das garantias imanentes da Constituicao. Os problemas e desafios que compoem a crise demandam investigacoes que tambem tenham por objeto a dialetica Constituicao-realidade e as condicoes faticas (elementos externos) que interferem na efetividade da Constituicao. A adequacao empirica das solucoes constitucionais deve ser submetida a analise e a critica, sem preconceitos, mas tambem sem o proposito de desconstituir aqueles elementos essenciais da Constituicao, especialmente os direitos fundamentais e o regime democratico, porque sao patrimonios da civilizacao a qual estamos ligados. Sem que se perca a identidade de juristas, teoricos ou cientistas do direito, sera preciso abrir-se e dialogar com outros saberes, como a Ciencia Politica e a Economia, para citar dois exemplos.
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宪法、现实和危机
“宪法权利必须得到保障,”康拉德·黑塞(Konrad Hesse)写道。宪法规则的遵守和执行不能由高于宪法的其他规则或超国家权力来保证。“宪法本身并不依赖于它自己的力量和保障。”(我们)。巴西宪法的案子,是保证固有的法律的合宪性控制材料修改宪法的权力,义务和担保的基本权利的直接应用,预测一个石堡与司法机关的宪法,宪法的权力来决定材料直接影响整体,和绑定。然而,黑塞本人指出,即使是最“巧妙的宪法体系”也不能保证其自身的有效性,当某些假设不存在时,特别是当宪法不能成为活生生的历史现实的配置秩序时。这种配置能力“[…它在很大程度上取决于外部因素,而宪法对这些因素的影响有限。”在外部因素中,黑森提到了历史现实的环境和时代的精神、社会、政治或经济发展水平。根据黑塞的说法,另一个基本前提是参与“宪法生活”的行动者的行为。统治者和被统治者接受宪法内容在道德上是正确的、合法的和强制性的意愿。简而言之,除了宪法的内在保障外,外部因素也起着决定性的作用。规范与现实之间的辩证法,表现为互补与紧张。所有这些都不是理论上的创新或新奇。它们是构成理论领域中确立的前提,是对构成进行分析和反思的认识论场所。变化的是对构成与现实之间关系的描述或解释,这是无数的构成理论中的每一个都提出的,是对关系极点的描述性或评价性强调。目前在巴西历史的球场,继续研究和严格的dialetica reflexao宪法啊,如果没有一个非常recomendavel imposicao社会科学的正确的,特别是那些调查,而是立法及其projecoes关于政治和社会的关系。我们的国家正在经历也许是再民主化后最大的危机。在联邦的三个层面上,政治危机增加了经济危机和国家金融危机。政治危机本身不会令人恐惧或威胁。自20世纪80年代中期的再民主化以来,我们经历了政治危机,但没有体制或宪法崩溃。1988年以后,《宪法》已被证明是充分的,同时也能抵抗季节性的政治危机。然而,我们有理由认为,目前的危机- -它有政治、经济和金融方面- -挑战并将继续挑战1988年宪法所设计的体制和组织工程。首先,危机的各个方面形成了一个整体,它们深深交织在一起。两年后,很明显,普遍危机的解决取决于三个方面的联合或连锁解决方案。第二,该国需要广泛的政治改革,而各政党、团体和派系似乎不愿意在这方面达成一致。巴西国家,第三,危机信号,在所有的领域,网络条件,同时完成所有任务,宪法impoe,接remuneratorias要求的公司内部状态(特别是有权势,这些公司被传统)和融资需求或信贷的外部经济和社会群体的成员。第四,国家需要彻底的税收改革,但没有人愿意失去任何东西。1988年以后,法学界,特别是致力于宪法研究的法学界,优先探索和构建模型、解释和论证方案,以优化宪法的规范性、实质性和工具性潜力。毫无疑问,这在理论、教条和宪法实践方面产生了一种远远优于以前存在的艺术状态。这种承诺甚至导致了对宪法的某种乐观态度。在这里,并不是说或暗示这个国家正在经历一场宪法危机或即将陷入一场宪法危机。宪法生效。宪法作为一个整体没有争议。宪法保持其合法性。这表明,我们可能正处于一个周期的末尾。
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