{"title":"挽歌的碎片","authors":"Ulisses Barres de Almeida","doi":"10.7437/cs2317-4595/2022.01.017","DOIUrl":null,"url":null,"abstract":"Em seus diários, sugestivamente intitulados “Martirologia”, o grande cineasta russo Andrei Tarkovskij escreveu que o passado é muito mais real, ou pelo menos mais estável, mais resiliente, que o presente, pois o tempo só adquire peso material na memória. É este exercı́cio de realismo que tem ocupado parte da minha dinâmica de trabalho desde o final do ano passado, quando desapareceu de nossa convivência — pelo menos aquela efêmera, pertencente ao tempo presente — o homem que para mim foi não apenas um cientista admirável e um querido amigo, mas principalmente um mestre. Minha vocação cientı́fica não nasceu com o Ronald. Mais de trinta anos separavam nosso gérmen comum paulistano, que brincávamos estar radicado no mais brasileiro dos endereços, o Ipiranga, e foi apenas em 2013, no Rio de Janeiro, que eu o conheci. Mas ela desabrochou na relação com ele, quando passei a integrar seu grupo de pesquisa em Astropartı́culas no CBPF — área, aliás, herdeira da Fı́sica de Raios Cósmicos, em cujo contexto esse Centro foi fundado, em 1949. Apesar da efeméride relativamente tardia, seu impacto na minha trajetória foi tal que tenho para com ele a gratidão de uma vida. A convivência quase diária com o Ronald no CBPF abriu-me a novos aspectos da minha atividade cientı́fica e profissional que, reconheço, não teriam acontecido facilmente fora deste encontro. Ele foi para mim um mentor fiel, entusiasmado e dedicado. A história cientı́fica e de vida do Ronald não esteve circunscrita apenas a São Paulo e ao Rio, mas passou também por Los Angeles, onde se doutorou na Universidade da Califórnia, nos anos 70, e por Genebra, uma década depois, onde esteve por um perı́odo a trabalhar no CERN. E tampouco se restringiu a horizontes limitados, mas, refletindo seu espı́rito incontido, alargou-se, de uma maneira que viria a caracterizá-lo, por um sem-fim de extensões, dos Pampas Argentinos às altitudes do Plateau Tibetano. A um espı́rito aventureiro como o seu, nossa área de pesquisa deve ter se apresentado com uma irresistı́vel atração — seja pela aventura cientı́fica e técnica que é construir e operar instrumentos sofisticados para o estudo do cosmos nos","PeriodicalId":415124,"journal":{"name":"Ciência e Sociedade","volume":"41 1","pages":"0"},"PeriodicalIF":0.0000,"publicationDate":"2022-09-01","publicationTypes":"Journal Article","fieldsOfStudy":null,"isOpenAccess":false,"openAccessPdf":"","citationCount":"0","resultStr":"{\"title\":\"Fragmentos para uma Elegia\",\"authors\":\"Ulisses Barres de Almeida\",\"doi\":\"10.7437/cs2317-4595/2022.01.017\",\"DOIUrl\":null,\"url\":null,\"abstract\":\"Em seus diários, sugestivamente intitulados “Martirologia”, o grande cineasta russo Andrei Tarkovskij escreveu que o passado é muito mais real, ou pelo menos mais estável, mais resiliente, que o presente, pois o tempo só adquire peso material na memória. 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A convivência quase diária com o Ronald no CBPF abriu-me a novos aspectos da minha atividade cientı́fica e profissional que, reconheço, não teriam acontecido facilmente fora deste encontro. Ele foi para mim um mentor fiel, entusiasmado e dedicado. A história cientı́fica e de vida do Ronald não esteve circunscrita apenas a São Paulo e ao Rio, mas passou também por Los Angeles, onde se doutorou na Universidade da Califórnia, nos anos 70, e por Genebra, uma década depois, onde esteve por um perı́odo a trabalhar no CERN. E tampouco se restringiu a horizontes limitados, mas, refletindo seu espı́rito incontido, alargou-se, de uma maneira que viria a caracterizá-lo, por um sem-fim de extensões, dos Pampas Argentinos às altitudes do Plateau Tibetano. 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Em seus diários, sugestivamente intitulados “Martirologia”, o grande cineasta russo Andrei Tarkovskij escreveu que o passado é muito mais real, ou pelo menos mais estável, mais resiliente, que o presente, pois o tempo só adquire peso material na memória. É este exercı́cio de realismo que tem ocupado parte da minha dinâmica de trabalho desde o final do ano passado, quando desapareceu de nossa convivência — pelo menos aquela efêmera, pertencente ao tempo presente — o homem que para mim foi não apenas um cientista admirável e um querido amigo, mas principalmente um mestre. Minha vocação cientı́fica não nasceu com o Ronald. Mais de trinta anos separavam nosso gérmen comum paulistano, que brincávamos estar radicado no mais brasileiro dos endereços, o Ipiranga, e foi apenas em 2013, no Rio de Janeiro, que eu o conheci. Mas ela desabrochou na relação com ele, quando passei a integrar seu grupo de pesquisa em Astropartı́culas no CBPF — área, aliás, herdeira da Fı́sica de Raios Cósmicos, em cujo contexto esse Centro foi fundado, em 1949. Apesar da efeméride relativamente tardia, seu impacto na minha trajetória foi tal que tenho para com ele a gratidão de uma vida. A convivência quase diária com o Ronald no CBPF abriu-me a novos aspectos da minha atividade cientı́fica e profissional que, reconheço, não teriam acontecido facilmente fora deste encontro. Ele foi para mim um mentor fiel, entusiasmado e dedicado. A história cientı́fica e de vida do Ronald não esteve circunscrita apenas a São Paulo e ao Rio, mas passou também por Los Angeles, onde se doutorou na Universidade da Califórnia, nos anos 70, e por Genebra, uma década depois, onde esteve por um perı́odo a trabalhar no CERN. E tampouco se restringiu a horizontes limitados, mas, refletindo seu espı́rito incontido, alargou-se, de uma maneira que viria a caracterizá-lo, por um sem-fim de extensões, dos Pampas Argentinos às altitudes do Plateau Tibetano. A um espı́rito aventureiro como o seu, nossa área de pesquisa deve ter se apresentado com uma irresistı́vel atração — seja pela aventura cientı́fica e técnica que é construir e operar instrumentos sofisticados para o estudo do cosmos nos